Realidades cíclicas
De tempos em tempos somos impactados com a morte. Ela é uma presença constante no mundo, um paradoxo em que a vida entrou, onde por exemplo, no mesmo dia e local, vidas se iniciam e vidas terminam. Como diz a música, “O dia acabou, o tempo chegou. Você batalhou bravamente, a guerra está vencida. Você fez o que tinha que ser feito, deu o seu melhor. Agora é tempo de descansar.”
Tempo. Eu não me canso de escrever sobre o tempo, sobre sua inexistência ao mesmo tempo que é tão real que devora a realidade como o mar devora um navio, por maior que seja, ao naufragar. Morte e tempo não deviam estar juntos. O tempo devia levar-nos ao crescimento e a redenção, e a morte é na verdade um atentado ao divino, uma perversão do sopro de vida do Criador que permitimos adentrar na perfeição da criação.
Agora vivemos em realidades cíclicas. Há poucos anos vi a notícia de que a última pessoa que esteve no Titanic, ou o último combatente da Primeira Guerra Mundial, faleceram. Desse milésimo de instante, onde essas pessoas deixaram de dividir a mesma realidade que nós, definitivamente, esses acontecimentos tornaram-se intangíveis e foram tragados por completo para os livros de história. Não há mais acesso há algo que esteve aqui, existiu, mudou mundos, transformou o mundo. Temos apenas as memórias e coleções de histórias, além de teorias e fatos. Mas ao mesmo tempo que soe trágica, essa transição esbarra na peculiaridade de que então, enfim, algo ou alguém se eternizou. Se o fato ou pessoa foi significativo para que o seu legado torne-se eterno, é o grande ponto, porque não há volta, daquele instante em diante o que está feito, está, e ecoará enquanto houverem lembranças dele.
É muito estranho, ou pelo menos é uma sensação que me deixa a pensar demais. Tantas pessoas que não passam de contas bancárias cheias ou egos inflados, gritando para chamar a atenção de todos a sua volta, manipulando, corroendo, se espalhando como um fungo ou bolor; e outras boas pessoas, simples, com a única audácia (nesse mundo moderno é um grande passo, diga-se de passagem) de serem alguma coisa verdadeira, viverem uma vida que valha a pena se orgulhar independente do que os mesquinhos digam, ou, no mínimo, buscam ser aquilo que seus cachorros ou filhos pensam que eles são. Mas independentemente de como ou quem, todos passarão um dia. E é vislumbrar esse lento passar do tempo, a lenta digestão da vida e da existência nessa realidade até que tudo isso se tornem memórias (boas ou ruins, depende apenas das escolhas de quem as viveu). É a estranha sensação de continuar existindo na mesma realidade que deixou de ser real para alguém num estalar de dedos. Essa imparcialidade é assustadora, ainda que palpável e inevitável.
Tal qual uma frase que li, “O Passado é o futuro com as luzes acessas”.
Mas vivemos negando o passado, negligenciando sua memória e o que na realidade somos, e com isso também nos tornamos reféns da imprevisibilidade do presente, enquanto não desejamos contemplar o futuro pelos mais fúteis motivos. Não sei quantas vezes escrevi essa frase nos último anos, mas é verdade que andamos alheios a realidade. Passamos desapercebidos pelo dia da nossa morte todos os anos, sem saber. Caminhamos numa trilha até que as coisas aconteçam e penso, o que faríamos de diferente em nossas escolhas se tivéssemos conhecimento de quais seriam os finais e as consequências? O que ecoaria depois de nós? Talvez isso nos guiasse a uma vida com mais sentido e propósito, mesmo que isso não mudasse o fato de que um dia passaríamos, mas mudaria o legado que fica. Isso sim, esse legado é a incorruptibilidade da nossa essência e existência enquanto humanos. É a única parte de nós que permanece nessa terra e permeia todas as realidades e gerações que virão. É o clichê do “daria mais abraços, sorrisos e diria o que sente”. Mas como foi triste, ainda ontem, ouvir de um amigo que veio de outra cidade: “Como as pessoas daqui são estranhas, elas não se cumprimentam, não se olham e não se despedem. É normal isso?”. Não, não é normal isso, bem como não é normal existirmos se esquecendo de viver.
Assim, também, nascem os heróis ocultos. Os verdadeiros heróis, que contrariando estimativas, realidades e costumes, se propõem a fazer o que deve ser feito. Na maioria das vezes não são enaltecidos pela mídia ou tornam-se alvos de biografias e livros, mas o mais importante esses homens alcançaram, tornaram-se eternos e de fato viveram. Combateram o bom combate, completaram a carreira e guardaram a fé. De todas as infinitas possibilidades que a vida apresenta, essa sem dúvidas é a única e mais expressiva, que vem de uma simples compreensão de quem somos, porque somos e para quem somos. Para esses, não são necessárias as honrarias de reis, autoridades, ou outras formalidades, já que sua trajetória, a seus olhos, era natural. Acredito que para tais, a maior honraria é ver seu propósito perpetuado na continuidade daquilo que começou. Esses sim merecem. Esses sim contrariam esse ciclo de realidades que vem e vão e de fato fazem juz ao que Tiago diz: “Contudo, vós não tendes o poder de saber o que acontecerá no dia de amanhã. Que é a vossa vida? Sois, simplesmente, como a neblina que aparece por algum tempo e logo se dissipa.”
Escrevi na memória de um homem que viveu a sua maneira, com honra e para cumprir o propósito de sua existência proposto pelo Autor da Vida. Vá em paz Pr. Leonel, seu legado ecoa pela eternidade aqui, não apenas na sua história, mas também em tantas pessoas que tiveram suas vidas transformadas pelo que você se permitiu ser usado para o propósito que nasceu.
O que confortaria a nós se não a graça e o cuidado do Eterno, que a tudo criou para o oposto disso, para a eternidade e para a vida plena? É a esperança que temos, daquele que transcende nosso universo de pequenas realidades que fazem seu ciclo e mudam completamente a cada 40, 80 anos.
Sejamos ao menos um pouco mais que neblina.